Era uma manhã escura e chuvosa quando a pequena Lizandra, uma Moreau herdeira do coelho, andava pelas ruas de Vallindra levando consigo seu guarda-chuva rosa. Divagando em meios aos seus pensamentos, imaginava-se estudando futuramente na UniPotência, até que esbarrara em uma figura alta, caíra no chão e largara seu guarda-chuva.
– Perdão, senhor, estava desatenta e não notei que o senhor… – Mesmo do chão a pequena apressou-se em pedir desculpas, quando enfim olhara para quem ela se chocara e emudeceuse.
Da perspectiva na qual se encontrava, o homem a sua frente parecia ter três vezes o seu tamanho. Era um ser-humano esguio de feições carrancudas, possuía um longo nariz fino, olhos cansados tomados por olheiras enormes, trajado de um sobretudo desgastado e cinzento, além de um chapéu escuro em sua cabeça.
A visão do indivíduo a sua frente a deixara completamente aterrorizada. Lembrara imediatamente dos vilões que, por vezes, eram notícia nos jornais ou viravam trending nas páginas que seguia no Instagrimm.
Diante disso, o homem estendeu uma de suas mãos lentamente em sua direção. Era magricela e envelhecida, a qual por um momento a coelha imaginara ser esquelética, como se pertencente a um Osteon ou alguma criatura sinistra que já ouvira relatos de algumas arcas.
Coincidentemente, ou talvez não, um raio delineou os céus nesse exato momento, seguido por um alto barulho de trovão tornando a cena mais apavorante.
E então, como se tomada pela descarga elétrica a qual acabara de presenciar, a jovem Moreau levantou-se em um salto e correu gritando desesperadamente na direção oposta a qual viera.
– Kyaaaaaaaah!
O homem encurvou-se, agarrou o guarda-chuva, olhou na direção da coelha saltitante e disse calmamente com uma voz grossa:
– Hey, jovem, esqueceu seu guarda-chuva…
Entretanto a pequena Lizandra já estava longe demais para ouvi-lo.
Da direção que o homem chegara encontrava-se um carro preto blindado, de onde saíra da portado motorista um androide bípede com aspectos humanoides. Sua cabeça robótica estendia-sede maneira que o formato lembrava uma cartola, ao passo que em seu rosto metálicoencontrava-se uma telinha onde exibia-se dois olhos digitais, no qual um deles aparentava oformato de um monóculo. Suas vestes lembravam a de um mordomo.
– Senhor, senhor. Por favor, não fique nessa chuva. – Disse o androide com uma voz mecanizada, tal como a de aplicativos de pesquisa da hypernet.
– A juventude esses dias está muita esquisita, Diener – Comentou o homem altivo ao seu motorista autômato.
Ambos se direcionaram a uma grande loja com aparência vintage, remetendo ao período anterior a terceira convergência, a qual em sua vitrine apresentava manequins vestidos compeças de roupas tricotadas. Logo acima, um letreiro pintado à mão continha o nome “Made with goodness”. Em comparação com os demais estabelecimentos de Vallindra com seus leds e letreiros de neon, a loja de roupas de tricô não possuía atrativo algum.
Lá dentro, uma medusa com aspecto mais velho, utilizando óculos arredondados e um vestido longo branco, varria o chão enquanto seus cabelos-cobrinhas (as quais também utilizavam óculos menores cada uma!) dormiam. Juntamente se encontrava ali uma senhora humana, que posicionava uma peça de roupa em um dos manequins na parte interna da loja. Ambas já estavam lá há algum tempo nesse dia.
Havia uma televisão de tubo posicionada no canto superior do local, na qual era transmitido um noticiário em que era informado sobre o aumento do número de aparentes sequestros de menestreamers dentro da arca de Vallindra.
– Na minha época essas coisas não aconteciam – Disse a medusa.
– Esses tais arcanautas são todos loucos! Nunca que eu entraria num troço desses. E o pior que são todos más influências! Acredita que ouvi meu sobrinho falando esses dias que quer “streamar” quando crescer? – Comentou a senhora.
– Vitória te livre, Marileide! Não deixe seu sobrinho fazer essas coisas não! Minha neta também falou outro dia que estava usando Instagrimm. Eu e cada uma das minhas madeixas olhamos e assobiamos seriamente para ela. Onde já se viu! Deve ser culpa daqueles amigos Hynne zé- droguinhas com quem ela anda – Esbravejou a medusa claramente ignorante ao assunto.
Ficaram conversando por um tempo focadas no noticiário até que a senhora humana exclamou:
– Olha, Dona Aretusa. O papo está bom, mas deixe-me voltar ao serviço porque se o chefe chegar e nos pegar papeando vai ficar uma fera!
– Que nada, Marileide. Esse homem sempre chega cedo. A essas horas já deve estar na sala dos fundos fazendo sabe-se lá o quê. Talvez fazendo coisas de empresário. Ou quem sabe coisa pior…
Normalmente seria assim. Porém para o azar das moças isso não ocorrera nesse dia. Por infortúnio das condições climáticas houvera um congestionamento no tráfego que impedira o chefe delas de chegar mais cedo.
Entretidas em meio a sua conversa, não notaram a presença que entrara pela porta da frente da loja e se posicionara próximo a elas.
– Com licença… – De repente ouviu-se uma voz grossa falando.
Subitamente o ambiente fora tomado por uma áurea negativa, uma força maquiavélica ou talvez apenas um devaneio coletivo fruto da imaginação das empregadas. A velha medusa que antes dialogava sem parar imediatamente se calou, aterrorizada pelo espanto do atraso atípico do chefe. Suas madeixas em um instante acordaram e ficaram de pé em estado de alerta. Ao mesmo tempo que a senhora ao lado esbarrara e deixara cair a vassoura, soando um estampido muito mais alto do que deveria ter sido realmente.
Ambas sem fôlego não falaram nada, apenas deixaram espaço para que o homem alto passasse em direção a sua sala de porta preto e branco no fundo do estabelecimento, seguido por seu motorista androide.As mulheres ouviram a porta sendo trancada pelo lado de dentro e só então voltaram a respirar
aliviadas.
– Misericórdia, fazia tempo que eu não via esse homem. Eu tenho é medo do que ele possa fazer tanto aí dentro.
– Olhe, Marileide. Eu tive a sensação de ter ouvido uns gritos estranhos outro dia desses.
Imaginei que ele pudesse estar fazendo algum tipo de tortura. Ou quem sabe coisa pior!
– Nunca entrei e nem quero entrar. Mas também não me surpreenderia se o visse no noticiário qualquer hora… – Cochicou Aretusa voltando ao trabalho.
Caso eventualmente alguma delas adentrasse o cômodo ficaria decepcionada, pois encontraria apenas uma sala comum com algumas estantes contendo livros, quadros nas paredes, uma mesa, um computador antigo e uma poltrona. A não ser que de alguma forma descobrissem a senha para um painel que se encontrava atrás de um dos livros. Nesse caso, teriam a surpresa de presenciar o chão se abrindo, revelando um maquinário engenhoso do qual se formaria uma plataforma que ascenderia de debaixo do piso.
Foi por meio dessa plataforma que o homem de sobretudo e seu androide desceram até um cômodo secreto, onde encontrava-se telas holográficas, computadores, máquinas e equipamentos altamente tecnológicos. Alguns monitores mostravam gráficos, esquemas, documentos, notícias, vídeos e, até mesmo,
imagens em tempo real dos mais diversos locais do mundo. No centro havia uma enorme tela, a qual estava em stand-by exibindo uma imagem de um rostinho com bigode e gravata borboleta.
– Não somente os jovens, as pessoas em geral estão esquisitas e mal-educadas hoje em dia! Elas sequer responderam meu bom dia! – Indignara-se o homem sem saber que as moças não o ouviram.
Logo após chegarem ao local subterrâneo, soou um toque do sistema de som que rodeava o ambiente. Era um medley da música mais famosa da banda Holy Avenger. Diener reconheceu como sendo o som usual de uma solicitação de chamada de vídeo, o qual prontamente atendeu. A frente da tela central, em formato de semicírculo, localizava-se áreas rodeadas por lâmpadasde led no chão, as quais pertenciam a um sistema moderno de transmissão que projetava a
imagem completa dos interlocutores e alguns objetos de seus arredores. Dessa maneira, apesar de estarem em lugares distintos do globo terrestre, agora é como se estivessem todos na mesma sala.
Eram seres de raças diferentes, com aparências e idades diversas, porém com algo em comum: Utilizavam um uniforme de mordomo. Todos exceto uma elfa no meio do semicírculo, a qual estava sentada em uma cadeira atrás de uma mesa. Era Niemma, com seu cabelo preso em formato de rabo de cavalo, possuía óculos de visor roxo, usava headphone JPL e roupa metalizada. Além do fato de ser a única com vestimentas diferentes, fazia as unhas enquanto mascava chiclete.
– Mr. Good, o senhor está atrasado – Disse com uma voz arrastada, como se estivesse impaciente ou talvez apenas entediada.Todos os que estavam projetados ficaram embasbacados pela petulância com a qual Niemma se dirigiu ao homem. Após finalmente poderem vislumbrar aquele de quem ouviram falar durante o processo de recrutamento, puderam testificar o que os boatos diziam. Era um homem com aparência imponente e assustadora, o qual passava a sensação de que poderia fulminar qualquer um pelo menor descuido ou insubordinação que fosse, mesmo a distância. Entretanto, ao contrário do que era esperado, não foi o que ocorreu.
– Desculpem-me senhores, tivemos um contratempo no caminho hoje. Em que parte da cerimônia de iniciação estamos? – Indagara o homem.
– Na parte em que o senhor explica os princípios e valores da organização… – Respondeu Niemma vagarosamente, sem nem mesmo olhar para a frente, concentrada em sua atividade de fazer as unhas. Já ouvira esse discurso muitas vezes anteriormente. Diante dessa informação, Mr. Good posicionou-se na frente dos projetados, colocou suas mãos para trás tal qual um capitão prestes a explicar estratégias de guerra para seus soldados, inspirou
profundamente e começou sua fala:
– Por muitos anos, arcanautas exploraram as mais diversas arcas ao redor da terra, trazendo consigo informações valorosas para os terráqueos, bem como materiais preciosos. Também fomos protegidos contra seres intergalácticos pela ORDEM. Contudo, e quanto as consequências
de intrigas políticas, cartéis, máfias e as inúmeras organizações criminosas existentes? Quem tem protegido o planeta? Quem? QUEM???
Subitamente, inflamado pela motivação do próprio discurso, Mr. Good aumentara o tom de voz.
– NÓS! Durante anos nossa organização tem agido às escondidas pelo mundo afora. Durante anos temos impedido guerras e ataques terroristas, evitado a ascenção de governos autoritários, frustrado planos de cultistas e sociedades maléficas. Até mesmo já salvamos a pele de personalidades bastante conhecidas como o Sr. Amon.
Após o nome do bilionário Arturo ser citado, podia-se sentir um ar de supresa vindo dos novos Maids.
– Siiiim! O Sr. Amon tem seus guarda-costas, mas na hora que o caldo engrossa somos nós a quem ele recorre. Vocês sequer imaginam a quantidade de atentados contra vida dele que já impedimos. Isso, meus amigos, a rede glóbulo não mostra! Nesse momento, Mr. Good encostou uma mão na testa, encobrindo parte de sua face e, de olhos fechados com um sorriso de canto de rosto, começou a soltar risadas que quase não podiam serem ouvidas. Seu corpo tremia de euforia, como se algo tivesse sido ativado dentro de si. Porém de alguma forma ainda se contia.
– Esse é o maior desejo da nossa organização. Destruir preconceitos, extinguir a fome do mundo, aniquilar toda desunião de povos, exterminar a dor dessa terra, dizimar toda desigualdade social, dilacerar todo tipo de maldade e CONCLUIR NOSSOS PLANOS BENÉFICOS!!!! Já não conseguia mais se conter. Estendera as mãos abertas para o alto, inclinara seu corpo para trás, ficara com seus olhos vidrados em algum lugar do teto enquanto seu corpo vibrava emfrenesi. Também abrira um sorriso que, na visão dos formandos, era amedrontador. Nesse momento, ele havia sido totalmente dominado. Fora totalmente dominado pelo desejo de fazer o bem!
– MWAHAHAHAHAHA, MWAHAHAHAHAHA, MWAHAHA…
– Mr. Good, dessa maneira o senhor está soando como um vilão – Niemma cortou secamente sem aparentar nem um pouco de medo.
– Verdade, verdade. Desculpem-me a empolgação. – Voltara a si abruptamente. – No mais, desejo a todos boas-vindas à organização.
Posteriormente encerrara o sermão com bons votos, motivando uma nova geração de Maids que iniciava naquele momento. Algum tempo se passara após o fim da cerimônia e da transmissão. Restando somente na sala Mr. Good, Diener e Niemma.
– Agora, o que faremos, senhor? – Questionou a elfa após estourar uma bola de chiclete. O homem virou-se para as inúmeras telas da sala, cruzou os braços e com um olhar obscuro falou:
– A mesma coisa que fazemos todos os dias, Niemma. Tentar melhorar o mundo! Os que estavam presentes na reunião desse dia não sabiam ainda, mas ali encontravam-se os futuros responsáveis por impedir uma das maiores ameaças que o planeta terra viria a enfrentar.
E conseguiriam esse grande feito somente graças a liderança de alguém cuja aparência e trejeitos contrastavam complemente com aquilo que realmente era: Um homem de bom coração.